Meu vizinho tá tocando violão e a vida tá passando
*texto de dezembro de 2016
Meu vizinho tá tocando violão e a vida tá passando. Ele erra uma nota e volta uma sílaba, eu só percebo por causa da sílaba. Queria saber a letra para cantar junto com ele. Teria música ao vivo quase sempre. Tenho, só não acompanho. Eu não sei de qual apartamento vem o som, nem se ele toca no quarto, na sala, se o apartamento dele, diferente do meu, tem sala. Talvez ele more no 212, mas acho que é no 210 e a voz é bonita. Gosto de ouvir ele tocando, passa uma tranquilidade boa.
O que eu mais penso é qual o rosto dele. Posso passar por ele no corredor e não saber. Assim como a moça que anda de salto aqui em cima e que eu sei todos os horários em que ela costuma lavar roupa. Eu imagino nós todos em quadradinhos vistos por um corte. O Muriel e o cachorro da vizinha do lado: o cãozinho arranha a parede e o Muri levanta as orelhinhas e chega mais perto. Eles também nunca vão saber um o rosto do outro.
Para quem sempre viveu assim, isso pode parecer besteira. Mas, para mim, que vivi em sítio e sabia quem eram os vizinhos do hectare ao lado, é bem estranho.
O que eu mais penso é que desse menino, rapaz, homem eu não conheço o rosto, só a voz; mas o quanto a gente conhece o que tem dentro das pessoas donas daqueles rostos tão familiares para nós? O quanto a gente entende o que sente, o que pensa, o que vive? A distância existe e a sensação é de que ficamos fechados dentro de nossos quadradinhos com barreirinhas tão finas, mas que não se rompem para olhar pra quem tá do lado. Eu ainda vou descobrir o rosto dele. Eu ainda vou deixar aparecer o que tem dentro de mim.