O nome dela era Adele, mas eu chamava de Vó Delaide
Eu tinha um CD com músicas religiosas, não porque eu escutava músicas religiosas, mas porque nele tinha a voz da minha vó. Minha vó cantava no coral da Igreja Menino Deus e eu gostava da ideia de ter uma vó que cantava no coral. Quando ela parou de cantar, eu senti como se uma parte dela fosse embora.
Minha vó não era gordinha, não cozinhava bem, não me dava dinheiro escondido no natal nem nos aniversários. Minha vó era braba e fazia comida sem sal e pudim com um pingo de leite condensado. Mas foi ela quem me viciou em açúcar mascavo — como de colher até hoje.
Na casa da vó — uma casa verde de madeira com telhadinho, bem como aquelas que desenhamos quando crianças — havia dois potes de açúcar mascavo: o pote principal, com os grãos de açúcar, e o meu pote, com aquelas pedrinhas crocantes e bem doces. A vó dava batidinhas na lateral do pote principal para que as pedrinhas subissem e ela pudesse separar para mim. Quando eu chegava lá, era só correr até o armário e mergulhar a colher na melhor parte. Consigo ouvir o barulhinho do açúcar crocante dentro da boca e gosto de pensar nela pensando em mim mesmo quando eu não estava por perto.
Eu nunca disse que ia na casa dos meus avós ou na casa do vô ou na casa de tantos que moravam com eles. Eu dizia casa da vó, sempre. Eu passava muito tempo na casa dela e muito por causa dos primos e da dinda que moravam lá, mas muito também porque a vó tava sempre disposta a cuidar dos netos. Eu morava no sítio e nem sempre podia ir para casa depois da escola, então eu simplesmente ia para casa da vó e ficava por lá. Acho que é a única casa em que eu sempre cheguei sem avisar e sem ver problema nisso. Eu sabia e ainda sei o número do telefone de cor, mas não precisava ligar.
A vó pintava os cabelos e eu achava bem feio. Mas ela demorou anos para ouvir meus pedidos para deixá-los brancos. Ela chegou ao fim da vida linda.
A vó fazia pão. Quando fui no hospital visitar, olhava pras mãos dela e pensava em quanto pão ela fez. Doeu.
Eu provei massa pura, eu fiz mini pãezinhos para assar junto aos dela, isso era estar com a vó: fazer pão. As mesmas mãos enrolavam uma toalha de rosto formando um rolinho grosso, depois cobriam esse rolinho com outra toalha, como se fosse um bebê embaladinho. O batom desenhava olhos e boca e eu passava a tarde ninando aquelas toalhas.
Eu não fiz catequese e minha vó não gostou. Quando eu menstruei pela primeira vez, ela me disse que menstruar era horrível e minha mãe não gostou. Eu já não gostei inúmeras vezes de muitas coisas também.
Faz um tempo que sinto saudades da vó porque ela já não me reconhecia e, na verdade, eu também já não reconhecia mais ela. Agora a saudade é um pouco mais palpável porque a vida dela acabou. Porque agora eu não tenho mais nenhuma avó ou avô. Mas eu tenho lembranças, muito mais lembranças do que posso escrever agora.
Há dias penso em escrever para ti, vó, mas não queria me despedir antes da hora. Agora meus dedos estão gelados e tudo parece meio desconexo. Há uma semana, eu te falei que já ia passar e que tu já ia parar de sentir dor, falei que tu podia ir e chamei teu anjinho para te proteger. Eu só quero que tu esteja feliz, vó.