Muriel

Laís Webber
3 min readApr 5, 2023

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(uma tentativa de despedida)

Como se o ar se transformasse em gelatina de uma hora para outra. Tudo que vejo é turvo. Lentamente é a única forma de mover o corpo. Até respirar dói, pesa. Sinto minha existência fragmentada. Uma parte de mim segue em modo automático dando conta daquilo é preciso dar conta, pelo menos daquela pequena parte que minha barriga não pôde empurrar. A outra parte esquece a racionalidade e vive num limbo que te vê em todos os cantos em que tu costumava estar.

A saudade é física. Necessidade de toque. Do calor. Da textura. Do som.

A dor caminha das articulações para o peito e sobe para a garganta.

As tuas pernas ficaram sem forças naquela segunda de manhã. Teus olhos me pediam que cuidasse de ti. Agora são as minhas pernas que amolecem pela impossibilidade de seguir te cuidando.

Quantos litros de água é preciso beber para poder chorar?

Quantos litros de lágrimas são suficientes para meu corpo entender que não terá mais o teu colado toda noite?

Quantos pelos pelo chão? Quantos olhares sofridos para os arranhões que começam a sumir da minha pele?

Não quero deixar de te encontrar pelo caminho, mesmo que agora tropece nas memórias e não mais em ti dançando entre minhas pernas pela manhã.

Teu cheiro no meu nariz. Teus miados nos meus sonhos. Tuas estripulias nas histórias que vou contar por aí repetidas vezes.

Meu corpo fragmentado porque uma parte dele precisou ir.

Muriel, o gatinho que fez fu duas vezes na vida, que mamou nos pijamas do início ao fim, que espera a luz apagar para vir pra cama, que me fazia dormir virada apenas para a direita toda noite, que cutucava o quito de manhã, que amava água — do tanque, da pia, da fonte, do chuveiro -, que molhava todo o corpo de um jeito que parecia suor de criança, que era rei, que roncava baixinho, que fazia um barulhinho gostoso enquanto comia, que odiava sachê, que amava plantas, que comia ora-pro-nobis, que amava a luz que entra pela janela, que tentava fazer amizade até com gatinhos brabos, que era o yang enquando dani era o yin, que suspirava alto quando se abraçava no meu braço, que tentava lamber cumbucas sem sucesso, que dormia fofinho, que transformou minha casa em lar, que amava o arranhador de papelão que eu fiz, que miava gordo, que deitava de barriga para não tomar remédio, que tirava minhas mãos da sua barriga puxando com as patinhas até a cabeça, que dava gemidinhos, que adorava carinho debaixo do queixo, que respondia ao meu chamado caminhando determinado e de queixo levantado, que era vesguinho, que protegia o rostinho da luz para dormir, que tinha cores assimétricas no focinho, que tinha um dedo rosa e todos os outros pretos, que caminhava leve, que amassava pãozinho na barriga, que dormia grudado na daniela, que eu amei e vou amar para sempre, que é impossível de definir com uma lista mesmo que ela seja infinita.

vai em paz, meu gurizinho. tu é só amor.

daniela e muriel

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Laís Webber
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Written by Laís Webber

Jornalista e Professora e tudo isso é só uma pequena parte.

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