Faz sentido sermos apenas clientes?

Laís Webber
3 min readAug 11, 2023

Fui ao médico e, na requisição do exame que ele me entregou, estava escrito Cliente: Laís Webber. Aquele cliente me saltou aos olhos. Até pensei se fosse cliente mesmo, exigiria um atendimento bem melhor e menos intrometido na minha vida pessoal. Mas o ponto não era esse.

O ponto é: faço questão de ser paciente do meu médico, não cliente. Assim como quero ser professora dos meus alunos e não uma prestadora de serviços. Na verdade, o ponto anterior define bem o argumento aqui: a relação cliente e prestador de serviço está no âmbito de uma relação neoliberal, de uma ideia individualista em que um tenta ganhar o máximo possível em cima do outro. Exploração, em resumo.

Em oposição, a relação de médico e de paciente e de professora e aluno, guardadas as especificidades de cada uma, estão no âmbito da solidariedade e do afeto no sentido freireano da coisa — estarmos implicados no tratamento/desenvolvimento/aprendizagem do outro.

Quando o dinheiro e o poder não têm a centralidade em uma relação, sobra espaço para a construção conjunta e a colaboração na resolução de questões, sejam elas da área que forem.

Fiquei algumas semanas pensando naquele termo na minha requisição de exame e não parei mais de me perguntar: é só essa relação que a gente sabe ter agora entre pessoas e instituições? (entre pessoas e pessoas a gente deixa para outro momento).

Quando eu era criança, meu pai participava da associação de moradores do bairro e da associação de pais e mestres da minha escola; minha mãe era associada ao sindicato da categoria dela. Eu e meu irmão estudamos em escolas e universidades, ele participou do diretório acadêmico e eu entrei para coletivos de educação popular. Tudo isso vivendo em Porto Alegre.

Em nenhum desses espaços a relação de cliente e prestador de serviços estava estabelecida e hoje parece que está — ou quase. Vejo pessoas que só entram em associações ou movimentos sociais porque veem vantagens pessoais como aprender alguma coisa ou ganhar horas para o currículo. Contribuir para o sindicato só vale se ele apresentar bons resultados. A escola dos filhos recebe cobranças e não colaboração.

Associado, integrante, membro, paciente, aluno são posições que estão sendo apagadas aos poucos (será?), fica o cliente e o prestador, o funcionário e patrão, e o sindicato se enfraquece e o coletivo perde a força e a escola perde a potência e as associações não vão a lugar nenhum ou são carregadas nas costas por uns poucos ou tomadas por interesseiros pré-candidatos à vereador. Prefeituras são empresas e cidadãos são os que podem pagar. E parece normal e parece que sempre foi assim.

Não, não é normal.

A minha reflexão não está completa (isso é possível?) e eu não sei nem como fechar esse texto porque são nuances delicadas e um esforço pessoal para manter essas tantas relações vivas na minha vida, mas ser pessoal e ser a minha vida já leva para o âmbito do indivíduo de novo e individualmente não há colaboração.

Faz sentido sermos apenas clientes?

Este texto foi enviado na minha newsletter, Faz Sentido?. Envio textos mensalmente por lá e, um tempinho depois, eles vêm pra cá. Então este é o #17 Faz sentido sermos apenas clientes? enviado em julho. Clica aqui para receber por email.

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Laís Webber

Jornalista e Professora e tudo isso é só uma pequena parte.