Eu tricoto e eu cevo um mate
Eu não sei fazer tricô direito, os acabamentos sempre ficam meio tortos e os pontos apertados ou frouxos demais. Mas minhas mãos se mantêm ocupadas sem poder soltar e os pensamentos não podem ir tão longe assim porque, se eu perder a lã, tudo se desmancha.
Eu tricoto para manter as mãos ocupadas.
Não consigo elaborar os sentimentos escrevendo, desenhando ou fazendo qualquer coisa criativa agora. Não consigo me concentrar em nada por muito tempo. Então mantenho minhas mãos ocupadas a cada momento em que sinto meu coração acelerar e sinto o nó apertar na garganta, ele não tem afrouxado nem por um segundo no último mês, mas com a lã azul enrolando na agulha ele para de apertar por instantes.
são perdas coletivas e perdas individuais misturadas e confusas e grandes demais.
eu disse que não estou conseguindo elaborar nada escrevendo, mas eu queria manter um mínimo senso de controle e de normalidade pelo menos nesse aspecto da vida.
eu tricoto e eu cevo um mate.
eu cevo um mate como um ritual.
uma vida em suspenso, muitas vidas em suspenso.
mas um mate na mão e uma amizade para compartilhar o mate, o abraço, o medo, a indignação, o cuidado.
racionamento de água na cidade inteira e minha mãe cevando um mate na cozinha que voltou a ser minha por alguns dias porque meu bairro alagava. me assusto primeiro e me recomponho depois: aquela cuia representava o mínimo de conforto e de normalidade nos primeiros dias de maio.
na tv
o homem afirma que coletou água da calha — bem fervida — para fazer o chimarrão
a voluntária sugere que sejam doados kits chimarrão para as pessoas abrigadas
o mínimo de conforto e de normalidade nos dias que seguem
de volta em casa, esquento a água para mente entender que estamos seguras
…
mate:
substantivo
erva-mate, chimarrão;
“vamos cevar o mate”.
mate:
verbo matar conjugado no imperativo afirmativo;
“mate o canalha que nos colocou nesta situação”.
Este texto foi enviado na minha newsletter, Faz Sentido?. Envio textos mensalmente por lá (às vezes alguns links vão junto) e, um tempinho depois, eles vêm pra cá. Então este é o #27 Tudo isso faz sentido? enviado em maio. Clica aqui para receber por email.