como um biscoito de natal
Foi um ano desapaixonado. Dois mil e vinte um de sentimentos misturados e confusos, como se eu tivesse engolido uma bolinha de massinha de modelar com aquela cor escura que fica depois de amassar e misturar laranja azul amarelo e verde.
Teve tristeza e teve raiva no meio dessas cores. Com a tristeza, não sei o que fazer; já a raiva é mais minha amiga, pois, como diria Audre Lorde “a raiva expressa e traduzida em uma ação a favor de nossos ideais e nosso futuro é um ato de esclarecimento que liberta e dá força, pois é nesse processo doloroso de tradução que identificamos quem são os nossos aliados, com quem temos sérias diferenças e quem são nossos verdadeiros inimigos. A raiva é repleta de informação e energia”.
A ideia de criar oficinas de escrita online não veio da raiva, porém. Mas foi canal de escape para essa angústia seguir seu rumo. As oficinas nasceram da vontade de reencontrar a paixão. Reencontrar momentos em que a minha dedicação fizesse sentido. Relembro, agora, que o sentido está na troca, nas pessoas. Em reconhecer os aliados, afinal.
Escrevo esta carta como se ela fosse o biscoito de natal que eu queria entregar para cada pessoa que dividiu comigo os momentos de oficina do ano. Que confiou em mim. Que abriu o peito. Que esteve ali.
Ler os textos de cada pessoa por meio dos ouvidos foi um presente. Conhecer um pedacinho da imaginação dos outros. Como não ter paixão?
Pego para mim o desejo da Virginia Woolf: “espero que vocês tenham dinheiro suficiente para viajar e vagar, para contemplar o futuro ou o passado do mundo, para sonhar com livros, tardar em esquinas de ruas e deixar que a linha de pensamento mergulhe na correnteza”. Desejo oportunidades de vida e de sonho para que a vida vire escrita, para que o sonho seja vida pelo contato da caneta com o papel.
Tem um trechinho de um livro do Calvino em que ele diz “[a escrita] que irá guiar a narrativa na direção em que a expressão verbal flui com mais felicidade”; eu gosto de focar na palavra felicidade. Fazer as coisas com felicidade, seja escrever, seja qualquer outra coisa, é outro biscoitinho que adoça a língua da gente.
Fazer as oficinas, desde inventá-las até vivê-las, tirou um pouco — ou um muito — daquele gosto marrom-massinha da minha garganta e deixou o baunilha-biscoito no lugar. Felicidade. Nada disso se faz sozinha.
Agradeço, de coração, a possibilidade que cada pessoinha me trouxe e termino esse biscoito desejando que vocês tropecem na poesia dentro de casa e encontrem as palavras na calçada. Como disse o poeta no livro do Afonso Cruz: “Estão em todo o lado, os poemas, e a maior parte das vezes até preferem esconder-se nos objetos mais singelos”.
O ano foi desapaixonado. Mas o afeto foi colocado à mesa toda vez.
Obrigada.
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Texto escrito em agradecimento às pessoas que participaram das oficinas de escrita online que criei em 2021 — e seguirei criando.