Câncer e café com leite

Laís Webber
4 min readNov 11, 2024

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Ele tava ali tomando café com leite. Ainda na cama do hospital, mas de pijama fazendo biquinho pra encostar os lábios na xícara. Aquele pão no pratinho ao lado. O primeiro desde junho.

Ainda na cama do hospital, ainda preso a uma mangueirinha com antibiótico, ainda com outra mangueirinha entrando pelo nariz e indo até o estômago — que já não tá mais na mesma posição dentro do corpo. Mas tomando uma xícara de café com leite.

Ele tava tomando uma xícara de café com leite e nem parece que há poucos dias eu chorava de medo que meu pai morresse. Eu ainda tô com medo. Mas ninguém pode morrer enquanto volta a viver a simplicidade dos dias como se a vida fosse mesmo simples. Eu nunca senti tanto medo de perder alguém. Eu nunca pensei tão seriamente na vida sem meu pai.

Há quarenta dias, é tudo sobre sondas, endoscopias, colegas de quarto, antibióticos, fisioterapeuta, acesso, glicemia, infecção ou inflamação, tomar banho na cama ou no chuveiro, febre, sono, sono, cansaço. No hospital, todos são corpos em cima de camas. Corpos que todo mundo vira e mexe e que pertencem mais aos médicos que aos pacientes.

Mas é meu pai ali. O mesmo velho teimoso e manhoso de sempre. Com os mesmos defeitos que sempre me irritaram. Sem o bom humor que nem sempre me agradou. Mas é ele ali.

E agora ele tava ali, mas tomando café com leite numa tarde de domingo. Queria que fosse num domingo de sol como é, mas que ele estivesse no pátio de casa tomando sol com os pés sujos e rachados. Mas só o biquinho que a boca faz pra alcançar a xícara já traz um pouco ele de volta, ele querendo alcançar alguma coisa da normalidade da vida da gente. Chegar mais perto do gosto do café que minha mãe faz e leva na cama num dia qualquer de manhã cedo.

Eu nunca senti tanto medo que meu pai morresse. Eu nunca acreditei tanto que isso tava tão perto de acontecer. Eu nunca evitei tanto pensar nisso. Pensei em todas as pessoas que eu xingaria no velório porque sentir raiva é uma das minhas formas de lidar com a tristeza.

É difícil saber que ele também tá com medo. Que ele não sabe bem como lidar com esse medo. Que ele ainda é esse velho teimoso e manhoso que sempre foi, mas que ele também mudou muito durante todas as sessões de quimioterapia e de radioterapia. Na UTI, logo após a cirurgia, ele me contou histórias de arrependimentos que nunca tinha me contato. Acessei um pai que quero acessar muitas vezes mais, um que fala do que sente.

A primeira vez que eu precisei segurar o choro na frente dele foi quando, também pela primeira vez, encaixei o equipo da alimentação na sonda na beira da cama de casa. A gente falava de outra coisa e eu fingia costume enquanto minha cabeça pensava eu tô encaixando comida numa mangueirinha pro meu pai se alimentar. A fragilidade não é fácil de se ver nos pais da gente, mas eu que não ia mostrar a minha porque não deve ser nada fácil confiar na firmeza da filha num momento de fragilidade e ver ela derreter aos poucos.

E eu derreti muitas vezes mais e continuo fazendo isso todos os dias de lá pra cá. Mas a firmeza segue na superfície.

Eu menti pra ele no hospital enquanto ele não dizia coisa com coisa para tentar deixá-lo mais calmo e fazer ele confiar em mim. Eu saí daquele quarto com o vômito na garganta e uma pedra no estômago. Eu não queria dormir para não ter que acordar depois.

Fazia uma semana que eu tinha voltado pra casa durante as enchentes quando minha mãe me contou que o pai podia estar com câncer. Eu nem tive tempo de lidar porque, no mesmo instante, recebi a mensagem de que minha avó tinha morrido. Eu fui no hospital visitar a mãe do meu pai porque ele me pediu pra ir e eu sabia que precisava cuidar dele nesse processo de perder a mãe. Não queria ver minha vó esperando a morte no hospital, foi difícil dizer no ouvido que ela podia ir embora se precisasse e rezar baixinho pra ela. Mas eu fui por ele. Ele veio me buscar em casa, eu entrei no carro e disse que ele cuidava da mãe dele e eu cuidava do meu pai, cada um cuidava do seu velhinho. Ele sorriu. Dias depois ela morreu e a gente soube que ele estava mesmo com câncer. Cuidar do meu velhinho seria muito mais. Acompanhá-lo no hospital virou outra coisa.

Eu tava confiante. Agora talvez eu esteja de novo.
Já que ele tá ali, tomando café com leite.

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Laís Webber
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Written by Laís Webber

Jornalista e Professora e tudo isso é só uma pequena parte.

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